Uma entrevista com Célia Cruz, bioengenheira e startupper, sobre boas práticas de conceção e desenvolvimento, incluindo em simulação médica
WvM: Cara Célia, é um prazer ver-te aqui no 17º andar do Hotel Dom Henriques, com vista para o Porto. Já lá vai algum tempo desde que trabalhaste no nosso grupo na conceção de um simulador de sofrimento fetal. O que tens feito desde então?
CC: Bem, depois de terminar os meus estudos em Bioengenharia na Universidade do Porto (UP), fiz um doutoramento na Universidade do Minho. Depois trabalhei na startup PeekMed que desenvolveu uma simulação para o planeamento de intervenções cirúrgicas. Em 2021 fundei a minha própria startup Complear, que apoia empresas nos aspetos regulamentares e de qualidade do desenvolvimento de dispositivos médicos. Também tenho um cargo na UP para lecionar o curso de Gestão e Inovação em Bioengenharia.
WvM: Parabéns! Podes falar-me um pouco mais sobre a PeekMed?
CC: A PeekMed desenvolveu um sistema de planeamento pré-operatório baseado em inteligência artificial para cirurgia ortopédica. A ferramenta permite visualizar, adicionar e manipular objetos no espaço 3D. Em seguida, coloca automaticamente o modelo digital da prótese na posição correta permitindo estimar o tamanho correto da prótese a utilizar na cirurgia.
WvM: Com uma ferramenta que tem impacto no tratamento, imagino que os aspectos regulamentares nunca estiveram longe da mente dos criadores?
CC: De facto! Sendo uma solução que tem uma finalidade médica e é utilizada para apoiar o tratamento de pacientes reais, enquadra-se como dispositivo médico. E como tal, tem de cumprir com a legislação dos vários países em que pretende entrar no mercado. No caso da União Europeia atualmente corresponde ao regulamento de dispositivos médicos, de modo a garantir a segurança dos pacientes e utilizadores e o desempenho da solução.
WvM: Podes também falar-me um pouco mais sobre as tuas atividades académicas?
CC: Apresentamos uma adaptação do método de Biodesign de Stanford para a conceção de soluções inovadoras na área da saúde, que consiste em fases distintas de exploração das necessidades, interação com as partes interessadas, consideração da propriedade intelectual e dos aspetos regulamentares, análise da indústria e competição, análise de mercado e estabelecimento de um modelo de negócio.
WvM: Antes de iniciar o desenvolvimento de um novo produto?
CC: Idealmente sim, mas várias partes deste processo são realizadas de forma iterativa ao longo do ciclo de desenvolvimento.
WvM: Isto não é muito diferente do processo de conceção de simulações e de simuladores que defendemos. Quais são alguns dos riscos se este método não for aplicado?
CC: De um ponto de vista de negócio, um dos principais motivos pelo qual startups falham é pela falta de adequação do produto ao mercado. Por isso um estudo adequado do mercado e compreender a necessidade pelas várias partes interessadas é crucial.
WvM: E do ponto de vista regulamentar?
CC: É crucial ter um processo sistematizado que siga boas práticas desde cedo no processo de conceção e desenvolvimento. Caso contrário pode haver riscos em que a sua mitigação poderá implicar uma alteração no design da solução antes de entrar no mercado. Ou caso já tenha entrado ter consequências na segurança das pessoas e ter mesmo de alterar ou retirar os produtos. Um caso conhecido na década de 1980 é do Therac-25, dispositivo médico projetado para administrar doses precisas no tratamento de radiação. Devido a uma falha no projeto e a uma análise de risco incorreta, o Therac-25 tinha um grave erro de software que resultou em vários acidentes e overdoses de radiação. É um exemplo das consequências de uma análise de risco inadequada e falhas no desenvolvimento de dispositivos médicos. E são estas boas práticas de desenvolvimento desde cedo no ciclo que apoiamos na Complear. O nosso objetivo é ajudar as empresas com soluções digitais que tenham ou possam vir a ter uma finalidade médica consigam entrar no mercado do modo mais ágil possível e de modo a conseguir garantir a segurança e desempenho das suas soluções.
WvM: Obrigado pelas tuas ideias e pela primeira entrevista em português para a revista!
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